Alfabetização
e Letramento:
Repensando o Ensino da Língua Escrita
Repensando o Ensino da Língua Escrita
Silvia
M. Gasparian Colello
FEUSP
silvia.colello@uol.com.br
FEUSP
silvia.colello@uol.com.br
Se,
no início da década de 80, os estudos acerca da psicogênese da língua escrita
trouxeram aos educadores o entendimento de que a alfabetização, longe de
ser a apropriação de um código, envolve um complexo processo de elaboração
de hipóteses sobre a representação lingüística; os anos que se seguiram,
com a emergência dos estudos sobre o letramento [i] , foram igualmente férteis na
compreensão da dimensão sócio-cultural da língua escrita e de seu aprendizado.
Em estreita sintonia, ambos os movimentos, nas suas vertentes teórico-conceituais,
romperam definitivamente com a segregação dicotômica entre o sujeito que
aprende e o professor que ensina. Romperam também com o reducionismo que
delimitava a sala de aula como o único espaço de aprendizagem.
Reforçando
os princípios antes propalados por Vygotsky e Piaget, a aprendizagem se
processa em uma relação interativa entre o sujeito e a cultura em que vive.
Isso quer dizer que, ao lado dos processos cognitivos de elaboração absolutamente
pessoal (ninguém aprende pelo outro), há um contexto que, não só fornece
informações específicas ao aprendiz, como também motiva, dá sentido e “concretude”
ao aprendido, e ainda condiciona suas possibilidades efetivas de aplicação
e uso nas situações vividas. Entre o homem e o saberes próprios de sua cultura,
há que se valorizar os inúmeros agentes mediadores da aprendizagem (não
só o professor, nem só a escola, embora estes sejam agentes privilegiados
pela sistemática pedagogicamente planejada, objetivos e intencionalidade
assumida).
O objetivo
do presente artigo é apresentar o impacto dos estudos sobre o letramento
para as práticas alfabetizadoras.
Capitaneada
pelas publicações de Angela Kleiman, (95) Magda Soares (95, 98) e Tfouni
(95), a concepção de letramento contribuiu para redimensionar a compreensão
que hoje temos sobre: a) as dimensões do aprender a ler e a escrever; b)
o desafio de ensinar a ler e a escrever; c) o significado do aprender a
ler e a escrever, c) o quadro da sociedade leitora no Brasil d) os motivos
pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever, e e) as próprias
perspectivas das pesquisas sobre letramento.
As dimensões do aprender a ler e a escrever
Durante
muito tempo a alfabetização foi entendida como mera sistematização do “B
+ A = BA”, isto é, como a aquisição de um código fundado na relação entre
fonemas e grafemas. Em uma sociedade constituída em grande parte por analfabetos
e marcada por reduzidas práticas de leitura e escrita, a simples consciência
fonológica que permitia aos sujeitos associar sons e letras para produzir/interpretar
palavras (ou frases curtas) parecia ser suficiente para diferenciar o alfabetizado
do analfabeto.
Com
o tempo, a superação do analfabetismo em massa e a crescente complexidade
de nossas sociedades fazem surgir maiores e mais variadas práticas de uso
da língua escrita. Tão fortes são os apelos que o mundo letrado exerce sobre
as pessoas que já não lhes basta a capacidade de desenhar letras ou decifrar
o código da leitura. Seguindo a mesma trajetória dos países desenvolvidos,
o final do século XX impôs a praticamente todos os povos a exigência da
língua escrita não mais como meta de conhecimento desejável, mas como verdadeira
condição para a sobrevivência e a conquista da cidadania. Foi no contexto
das grandes transformações culturais, sociais, políticas, econômicas e tecnológicas
que o termo “letramento” surgiu [ii] , ampliando o sentido do que tradicionalmente
se conhecia por alfabetização (Soares, 2003).
Hoje,
tão importante quanto conhecer o funcionamento do sistema de escrita é poder
se engajar em práticas sociais letradas, respondendo aos inevitáveis apelos
de uma cultura grafocêntrica. Assim,
Enquanto a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de uma sociedade (Tfouni, 1995, p. 20).
Com
a mesma preocupação em diferenciar as práticas escolares de ensino da língua
escrita e a dimensão social das várias manifestações escritas em cada comunidade,
Kleiman, apoiada nos estudos de Scribner e Cole, define o letramento como
... um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos. As práticas específicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era definido, e segundo a qual os sujeitos eram classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou não-alfabetizado, passam a ser, em função dessa definição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (1995, p. 19)
Mais
do que expor a oposição entre os conceitos de “alfabetização” e “letramento”,
Soares valoriza o impacto qualitativo que este conjunto de práticas sociais
representa para o sujeito, extrapolando a dimensão técnica e instrumental
do puro domínio do sistema de escrita:
Alfabetização é o processo pelo qual se adquire o domínio de um código e das habilidades de utilizá-lo para ler e escrever, ou seja: o domínio da tecnologia – do conjunto de técnicas – para exercer a arte e ciência da escrita. Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denomina-se Letramento que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos (In Ribeiro, 2003, p. 91).
Ao
permitir que o sujeito interprete, divirta-se, seduza, sistematize, confronte,
induza, documente, informe, oriente-se, reivindique, e garanta a sua memória,
o efetivo uso da escrita garante-lhe uma condição diferenciada na sua relação
com o mundo, um estado não necessariamente conquistado por aquele que apenas
domina o código (Soares, 1998). Por isso, aprender a ler e a escrever implica
não apenas o conhecimento das letras e do modo de decodificá-las (ou de
associá-las), mas a possibilidade de usar esse conhecimento em benefício
de formas de expressão e comunicação, possíveis, reconhecidas, necessárias
e legítimas em um determinado contexto cultural. Em função disso,
Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (...dos professores), tanto na pré-escola quanto no ensino médio, seja a utilização da escrita verdadeira [iii] nas diversas atividades pedagógicas, isto é, a utilização da escrita, em sala, correspondendo às formas pelas quais ela é utilizada verdadeiramente nas práticas sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o ponto de partida e de chegada do processo de alfabetização escolar é o texto: trecho falado ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se estabelece numa determinada situação discursiva. (Leite, p. 25)
O desafio de ensinar a ler e a escrever
Partindo
da concepção da língua escrita como sistema formal (de regras, convenções
e normas de funcionamento) que se legitima pela possibilidade de uso efetivo
nas mais diversas situações e para diferentes fins, somos levados a admitir
o paradoxo inerente à própria língua: por um lado, uma estrutura suficientemente
fechada que não admite transgressões sob pena de perder a dupla condição
de inteligibilidade e comunicação; por outro, um recurso suficientemente
aberto que permite dizer tudo, isto é, um sistema permanentemente disponível
ao poder humano de criação (Geraldi, 93).
Como
conciliar essas duas vertentes da língua em um único sistema de ensino?
Na análise dessa questão, dois embates merecem destaque: o conceitual e
o ideológico.
1)
O embate conceitual
Tendo
em vista a independência e a interdependência entre alfabetização e letramento
(processos paralelos [iv] , simultâneos ou não [v] , mas que indiscutivelmente se complementam), alguns autores
contestam a distinção de ambos os conceitos, defendendo um único e indissociável
processo de aprendizagem (incluindo a compreensão do sistema e sua possibilidade
de uso). Em uma concepção progressista de “alfabetização” (nascida em oposição
às práticas tradicionais, a partir dos estudos psicogenéticos dos anos 80),
o processo de alfabetização incorpora a experiência do letramento e este
não passa de uma redundância em função de como o ensino da língua escrita
já é concebido. Questionada formalmente sobre a “novidade conceitual” da
palavra “letramento”, Emilia Ferreiro explicita assim a sua rejeição ao
uso do termo:
Há algum tempo, descobriram no Brasil que se poderia usar a expressão letramento. E o que aconteceu com a alfabetização? Virou sinônimo de decodificação. Letramento passou a ser o estar em contato com distintos tipos de texto, o compreender o que se lê. Isso é um retrocesso. Eu me nego a aceitar um período de decodificação prévio àquele em que se passa a perceber a função social do texto. Acreditar nisso é dar razão à velha consciência fonológica. (2003, p. 30)
Note-se,
contudo, que a oposição da referida autora circunscreve-se estritamente
ao perigo da dissociação entre o aprender a escrever e o usar a escrita
(“retrocesso” porque representa a volta da tradicional compreensão instrumental
da escrita). Como árdua defensora de práticas pedagógicas contextualizadas
e signifcativas para o sujeito, o trabalho de Emília Ferreiro, tal como
o dos estudiosos do letramento, apela para o resgate das efetivas práticas
sociais de língua escrita o que faz da oposição entre eles um mero embate
conceitual.
Tomando
os dois extremos como ênfases nefastas à aprendizagem da língua escrita
(priorizando a aprendizagem do sistema ou privilegiando apenas as práticas
sociais de aproximação do aluno com os textos), Soares defende a complementaridade
e o equilíbrio entre ambos e chama a atenção para o valor da distinção terminológica:
Porque alfabetização e letramento são conceitos freqüentemente confundidos ou sobrepostos, é importante distingui-los, ao mesmo tempo que é importante também aproximá-los: a distinção é necessária porque a introdução, no campo da educação, do conceito de letramento tem ameaçado perigosamente a especificidade do processo de alfabetização; por outro lado, a aproximação é necessária porque não só o processo de alfabetização, embora distinto e específico, altera-se e reconfigura-se no quadro do conceito de letramento, como também este é dependente daquele. (2003, p. 90)
Assim
como a autora, é preciso reconhecer o mérito teórico e conceitual de ambos
os termos. Balizando o movimento pendular das propostas pedagógicas (não
raro transformadas em modismos banais e mal assimilados), a compreensão
que hoje temos do fenômeno do letramento presta-se tanto para banir definitivamente
as práticas mecânicas de ensino instrumental, como para se repensar na especificidade
da alfabetização. Na ambivalência dessa revolução conceitual, encontra-se
o desafio dos educadores em face do ensino da língua escria: o alfabetizar
letrando.
2)
O embate ideológico
Mais
severo do que o embate conceitual, a oposição entre os dois modelos descritos
por Street (1984) [vi] representa um posicionamento radicalmente diferente, tanto
no que diz respeito às concepções implícita ou explicitamente assumidas
quanto no que tange à pratica pedagógica por elas sustentadas.
O “Modelo
Autônomo”, predominante em nossa sociedade, parte do princípio de que, independentemente
do contexto de produção, a língua tem uma autonomia (resultado de uma lógica
intrínseca) que só pode ser apreendida por um processo único, normalmente
associado ao sucesso e desenvolvimento próprios de grupos “mais civilizados”.
Contagiada
pela concepção de que o uso da escrita só é legitimo se atrelada ao padrão
elitista da “norma culta” e que esta, por sua vez, pressupõe a compreensão
de um inflexível funcionamento lingüístico, a escola tradicional sempre
pautou o ensino pela progressão ordenada de conhecimentos: aprender a falar
a língua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para, um dia
(talvez nunca) fazer uso desse sistema em formas de manifestação previsíveis
e valorizadas pela sociedade. Em síntese, uma prática reducionista pelo
viés lingüístico e autoritária pelo significado político; uma metodologia
etnocêntrica que, pela desconsideração do aluno, mais se presta a alimentar
o quadro do fracasso escolar.
Em
oposição, o “Modelo Ideológico” admite a pluralidade das práticas letradas,
valorizando o seu significado cultural e contexto de produção. Rompendo
definitivamente com a divisão entre o “momento de aprender” e o “momento
de fazer uso da aprendizagem”, os estudos lingüísticos propõem a articulação
dinâmica e reversível [vii]
entre “descobrir a escrita” (conhecimento de suas funções e formas de manifestação),
“aprender a escrita” (compreensão das regras e modos de funcionamento) e
“usar a escrita” (cultivo de suas práticas a partir de um referencial culturalmente
significativo para o sujeito). O esquema abaixo pretende ilustrar a integração
das várias dimensões do aprender a ler e escrever no processo de alfabetizar
letrando:
O significado do aprender a ler e a escrever
Ao
permitir que as pessoas cultivem os hábitos de leitura e escrita e respondam
aos apelos da cultura grafocêntrica, podendo inserir-se criticamente na
sociedade, a aprendizagem da língua escrita deixa de ser uma questão estritamente
pedagógica para alçar-se à esfera política, evidentemente pelo que representa
o investimento na formação humana. Nas palavras de Emilia Ferreiro,
A escrita é importante na escola, porque é importante fora dela e não o contrário. (2001)
Retomando
a tese defendida por Paulo Freire, os estudos sobre o letramento reconfiguraram
a conotação política de uma conquista – a alfabetização - que não necessariamente
se coloca a serviço da libertação humana. Muito pelo contrário, a história
do ensino no Brasil, a despeito de eventuais boas intenções e das “ilhas
de excelência”, tem deixado rastros de um índice sempre inaceitável de analfabetismo
agravado pelo quadro nacional de baixo letramento.
O quadro da sociedade leitora no Brasil
Do
mesmo modo como transformaram as concepções de língua escrita, redimensionaram
as diretrizes para a alfabetização e ampliaram a reflexão sobre o significado
dessa aprendizagem, os estudos sobre o letramento obrigam-nos a reconfigurar
o quadro da sociedade leitora no Brasil. Ao lado do índice nacional de 16.295.000
analfabetos no país (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de indivíduos
que, embora formalmente alfabetizados, são incapazes de ler textos longos,
localizar ou relacionar suas informações.
Dados
do Instituto Nacional de Estatística e Pesquisa em Educação (INEP) indicam
que os índices alcançados pela maioria dos alunos de 4ª série do Ensino
Fundamental não ultrapassam os níveis “crítico” e “muito crítico”. Isso
quer dizer que mesmo para as crianças que têm acesso à escola e que nela
permanecem por mais de 3 anos, não há garantia de acesso autônomo às praticas
sociais de leitura e escrita (Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Que
escola é essa que não ensina a escrever?
Independentemente
do vínculo escolar, essa mesma tendência parece confirmar-se pelo “Indicador
Nacional de Alfabetismo Funcional” (INAF), uma pesquisa realizada por amostragem
representativa da população brasileira de jovens e adultos (de 15 a 64 anos
de idade) [viii] : entre os 2000 entrevistados, 1475 eram analfabetos ou
tinham pouca autonomia para ler ou escrever, e apenas 525 puderam ser considerados
efetivos usuários da língua escrita. Indiscutivelmente, uma triste realidade!
Os motivos pelos quais tantos deixam de aprender a ler e a escrever
Por
que será que tantas crianças e jovens deixam de aprender a ler e a escrever?
Por que é tão difícil integrar-se de modo competente nas práticas sociais
de leitura e escrita?
Se
descartássemos as explicações mais simplistas (verdadeiros mitos da educação)
que culpam o aluno pelo fracasso escolar; se admitíssemos que os chamados
“problemas de aprendizagem” se explicam muito mais pelas relações estabelecidas
na dinâmica da vida estudantil; se o desafio do ensino pudesse ser enfrentado
a partir da necessidade de compreender o aluno para com ele estabelecer
uma relação dialógica, significativa e compromissada com a construção do
conhecimento; se as práticas pedagógicas pudessem transformar as iniciativas
meramente instrucionais em intervenções educativas; talvez fosse possível
compreender melhor o significado e a verdadeira extensão da não aprendizagem
e do quadro de analfabetismo no Brasil.
Nesse
sentido, os estudos sobre o letramento se prestam à fundamentação de pelo
menos três hipóteses não excludentes para explicar o fracasso no ensino
da língua escrita. Na mesma linha de argumentação dos educadores que evidenciaram
os efeitos do “currículo oculto” nos resultados escolares de diferentes
segmentos sociais, é preciso considerar, como ponto de partida, que as práticas
letradas de diferentes comunidades (e portanto, as experiências de diferentes
alunos) são muitas vezes distantes do enfoque que a escola costuma dar à
escrita (o letramento tipicamente escolar). Lidar com essa diferença (as
formas diversas de conceber e valorar a escrita, os diferentes usos, as
várias linguagens, os possíveis posicionamentos do interlocutor, os graus
diferenciados de familiaridade temática, as alternativas de instrumentos,
portadores de textos e de práticas de produção e interpretação...) significa
muitas vezes percorrer uma longa trajetória, cuja duração não está prevista
nos padrões inflexíveis da programação curricular.
Em
segundo lugar, é preciso considerar a reação do aprendiz em face da proposta
pedagógica, muitas vezes autoritária, artificial e pouco significativa.
Na dificuldade de lidar com a lógica do “aprenda primeiro para depois ver
para que serve”, muitos alunos parecem pouco convencidos a mobilizar os
seus esforços cognitivos em benefício do aprender a ler e a escrever (Carraher,
Carraher e Schileimann, 1989; Colello, 2003, Colello e Silva, 2003). Essa
típica postura de resistência ao artificialismo pedagógico em um contexto
de falta de sintonia entre alunos e professores parece evidente na reivindicação
da personagem Mafalda:
Com
ironia e bom humor, o exemplo acima explica o caso bastante freqüente de
jovens inteligentes que aprenderam a lidar com tantas situações complexas
da vida (aquisição da linguagem, transações de dinheiro, jogos de computador,
atividades profissionais, regras e práticas esportivas entre outras), mas
que não conseguem disponibilizar esse reconhecido potencial para superar
a condição de analfabetismo e baixo letramento.
Por
último, ao considerar os princípios do alfabetizar letrando (ou do Modelo
Ideológico de letramento), devemos admitir que o processo de aquisição da
língua escrita está fortemente vinculado a uma nova condição cognitiva e
cultural. Paradoxalmente, a assimilação desse status (justamente
aquilo que os educadores esperam de seus alunos como evidência de “desenvolvimento”
ou de emancipação do sujeito) pode se configurar, na perspectiva do aprendiz,
como motivos de resistência ao aprendizado: a negação de um mundo que não
é o seu; o temor de perder suas raízes (sua história e referencial); o medo
de abalar a primazia até então concedida à oralidade (sua mais típica forma
de expressão), o receio de trair seus pares com o ingresso no mundo letrado
e a insegurança na conquista da nova identidade (como “aluno bem-sucedido”
ou como “sujeito alfabetizado” em uma cultura grafocêntrica altamente competitiva).
... a aprendizagem da língua escrita envolve um processo de aculturação – através, e na direção das práticas discursivas de grupos letrados - , não sendo, portanto, apenas um processo marcado pelo conflito, como todo processo de aprendizagem, mas também um processo de perda e de luta social. (...)(...) há uma dimensão de poder envolvida no processo de aculturação efetivado na escola: aprender – ou não – a ler e escrever não equivale a aprender uma técnica ou um conjunto de conhecimentos. O que está envolvido para o aluno adulto é a aceitação ou o desafio e a rejeição dos pressupostos, concepções e práticas de um grupo dominante – a saber, as práticas de letramento desses grupos entre as quais se incluem a leitura e a produção de textos em diversas instituições, bem como as formas legitimadas de se falar desses textos -, e o conseqüente abandono (e rejeição) das práticas culturais primárias de seu grupo subalterno que, até esse momento, eram as que lhe permitiam compreender o mundo. (Kleiman, 2001, p. 271)
Como
exemplo de um mecanismo de resistência ao mundo letrado construído por práticas
pedagógicas (ainda que involuntariamnete ideologizantes) no cotidiano da
sala de aula, Kleiman (2001) expõe o caso de um grupo de jovens que se rebelaram
ante a proposta da professora de examinar bulas de remédio. Como recurso
didático até bem intencionado, o objetivo da tarefa era o de aproximar os
alunos da escrita, favorecendo a compreensão de seus usos, nesse caso, chamando
a sua atenção para os perigos da auto-medicação e para a importância de
se informar antes de tomar uma medicação (posologia, reações adversas, efeitos
colaterais, etc). Do ponto de vista dos alunos, o repúdio à tarefa, à escola
e muito provavelmente à escrita foi uma reação contra a implícita proposta
de fazer parte de um mundo ao qual nem todos podem ter livre acesso: o mundo
da medicina, da possibilidade de ser acompanhado por um médico e da compra
de remédios.
Na
prática, a desconsideração dos significados implícitos do processo de alfabetização
- o longo e difícil caminho que o sujeito pouco letrado tem a percorrer,
a reação dele em face da artificialidade das práticas pedagógica e a negação
do mundo letrado – acaba por expulsar o aluno da escola, um destino cruel,
mas evitável se o professor souber instituir em classe uma interação capaz
de mediar as tensões, negociar significados e construir novos contextos
de inserção social.
Perspectivas das pesquisas sobre letramento
Embora
o termo “letramento” remeta a uma dimensão complexa e plural das práticas
sociais de uso da escrita, a apreensão de uma dada realidade, seja ela de
um determinado grupo social ou de um campo específico de conhecimento (ou
prática profissional) motivou a emergência de inúmeros estudos a respeito
de suas especificidades. É por isso que, nos meios educacionais e acadêmicos,
vemos surgir a referência no plural “letramentos”.
Mesmo
correndo o risco de inadequação terminológica, ganhamos a possibilidade
de repensar o trânsito do homem na diversidade dos “mundos letrados”, cada
um deles marcado pela especificidade de um universo. Desta forma, é possível
confrontar diferentes realidades, como por exemplo o “letramento social”
com o “letramento escolar”; analisar particularidades culturais, como por
exemplo o “letramento das comunidades operárias da periferia de São Paulo”,
ou ainda compreender as exigências de aprendizagem em uma área específica,
como é o caso do “letramento científico”, “letramento musical” o “letramento
da informática ou dos internautas”. Em cada um desses universos, é possível
delinear práticas (comportamentos exercidos por um grupo de sujeitos e concepções
assumidas que dão sentido a essas manifestações) e eventos (situações compartilhadas
de usos da escrita) como focos interdependentes de uma mesma realidade (Soares,
2003). A aproximação com as especificidades permite não só identificar a
realidade de um grupo ou campo em particular (suas necessidades, características,
dificuldades, modos de valoração da escrita), como também ajustar medidas
de intervenção pedagógica, avaliando suas conseqüências. No caso de programas
de alfabetização, a relevância de tais pesquisas é assim defendida por Kleiman:
Se por meio das grandes pesquisas quantitativas, podemos conhecer onde e quando intervir em nível global, os estudos acadêmicos qualitativos, geralmente de tipo etnográfico, permitem conhecer as perspectivas específicas dos usuários e os contextos de uso e apropriação da escrita, permitindo, portanto, avaliar o impacto das intervenções e até, de forma semelhante à das macro análises, procurar tendências gerais capazes de subsidiar as políticas de implementação de programas. (2001, p. 269)
***
Sem
a pretensão de esgotar o tema, a breve análise do impacto e contribuição
dos estudos sobre letramento aqui desenvolvida aponta para a necessidade
de aproximar, no campo da educação, teoria e prática. Na sutura entre concepções,
implicações pedagógicas, reconfiguração de metas e quadros de referência,
hipóteses explicativas e perspectivas de investigação, talvez possamos encontrar
subsídios e alternativas para a transformação da sociedade leitora no Brasil,
uma realidade politicamente inaceitável e, pedagogicamente, aquém de nossos
ideais.
[i]
“Literacy” do inglês, traduzido por “letramento” no Brasil e por “literacia”
em Portugal é uma terminologia não dicionarizada que, nos meios acadêmicos,
vem sendo utilizada com diferentes sentidos.
[ii] No Brasil, o termo “letramento” foi usado pela 1a vez
por Mary Kato, em 1986, na obra “No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística”
(São Paulo, Ática). Dois anos depois, passa a representar um referencial
no discurso da educação, ao ser definido por Tfouni em “Adultos não alfabetizados:
o avesso do avesso” (São Paulo, Pontes) e retomado em publicações posteriores.
[iii] O autor utiliza a expressão “escrita verdadeira” em oposição
à “escrita escolar”, um modelo muitas vezes artificial, cujo reducionismo
não faz justiça à multidimensionalidade da língua viva.
[iv] Como evidência desse paralelismo, é possível, por exemplo, termos
casos de pessoas letradas e não alfabetizadas (indivíduos que, mesmo incapazes
de ler e escrever, compreendem os papéis sociais da escrita, distinguem
gêneros ou reconhecem as diferenças entre a língua escrita e a oralidade)
ou de pessoas alfabetizadas e pouco letradas (aqueles que, mesmo dominando
o sistema da escrita, pouco vislumbram suas possibilidades de uso).
[v] Em uma sociedade como a nossa, o mais comum é que a alfabetização
seja desencadeada por práticas de letramento, tais como ouvir histórias,
observar cartazes, conviver com práticas de troca de correspondência, etc.
No entanto, é possível que indivíduos com baixo nível de letramento (não
raro membros de comunidades analfabetas ou provenientes de meios com reduzidas
práticas de leitura e escrita) só tenham a oportunidade de vivenciar tais
eventos na ocasião de ingresso na escola, com o início do processo formal
de alfabetização.
[vi] Para um estudo mais aprofundado dos modelos “Autônomo” e “Ideológico”
descritos por Street, remetemos o leitor à leitura de Kleiman, 1985.
[vii] Dinâmica porque pressupõe o movimento intenso de um pólo ao outro;
reversível porque a experiência em qualquer um dos pólos remete ao amadurecimento
nos demais.
[viii] Para mais dados sobre a pesquisa do INAF (objetivos, população
envolvida, critérios de análise e resultados obtidos), remetemos o leitor
à leitura de Ribeiro (2003).
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